Grupo da Linha de Tiro Pernambucano, da qual Mário Sette fez parte em 1908.

 

 

Meu pai, à imitação de seu avô e bisavô, sempre teve o hábito de fazer assentamentos íntimos, quase diários, registrando datas de aniversários, mortes, mudanças de casas, partidas e chegadas de viagens, passeios, publicação de suas obras literárias, ocorrências marcantes ou curiosas, etc.

 

 

Foto da sede e convite para o primeiro desfile de carnaval do Club das Nove e Meia do Arraial, que foi realizado no Cais do Capibaribe, dia 05 de março de 1905, às 9:30h da manhã. Mário Sette foi um dos fundadores e 1º secretário do clube.

 

 

Toda a obra autobiográfica de Mário Sette ocupa três grossos volumes onde os textos datilografados se misturam a fotografias de várias épocas, recortes de jornais, bilhetes, papéis de folhinha, cartas de fiança, recibos, constituindo verdadeiros álbuns de recordações.

 

 

Mário Sette anotou junto à esta foto: "Interior do antigo Tetro Santa Isabel. Onde nos revimos adolescentes..." Referia-se ao seu reencontro com Maria Laura, quando voltou a morar no Recife.

 

 

(...) a saudade de um Recife distante durante quatro anos, a maturidade, o estado de espírito por ser avô, a convicção de um suave envelhecer nortearam-lhe as atividades para um novo gênero. Em vez da ficção, a evocação. Não mais cria, agora recorda.

 

 

Com a primeira neta, Hilcia, nos braços. "Ser avô... um doce envelhecer."

 

 

(...) ante a evolução rápida dos sintomas e em face de determinados exames de laboratório, o nosso saudoso Jarbas aconselhava-nos levá-lo para o Rio ou para São Paulo em busca de centros neuro-cirúrgicos mais adiantados, uma vez que tudo levava a crer tratar-se de um tumor cerebral e de caráter maligno.

 

 

Anotações autobiográficas do escritor sobre sua trajetória com Maria Laura, seu primeiro e único amor. Na primeira página:
"E eles dois eram assim quando se reencontraram, adolescentes, e amaram-se até hoje." 1902/3
Na página seguinte:
"Caminhos de um coração, para minha Maria Laura. E são hoje assim quando se amam ainda mais". 1948

 

 

Meu pai me olha demoradamente, segura-me com sua mão esquerda, puxa-me para junto de si, beija-me e faz um esforço enorme para se fazer entender: “Até no céu...”

As Memórias de Meu Pai

Hilton Sette

Meu Pai, em “Caminhos de um coração”, legou-nos um verdadeiro poster, em corpo inteiro, de sua maneira de ser, de pensar, de viver, de querer bem, de sofrer e até de perdoar. Trata-se de um livro de memórias muito íntimas, escrito em primeiro jacto, ao sabor da pena ou do teclado da máquina no intuito de evocar fatos, episódios, acontecimentos, figuras humanas, êxitos, saudades, fracassos e desabafos. Tudo quase sem sair do círculo estrito da sua “gente” – os familiares muito queridos, os parentes mais chegados, os amigos mais diletos.

Nada de testemunhos ou de interpretações, por exemplo, sobre conjunturas políticas, questões internacionais personalidades da época, fatos de interesse para a História pátria. Também nenhuma pretensão de confidenciar aventuras galantes, estroinices de rapaz, fraquezas sexuais ou outros pecados, ---- na quase totalidade, em não sendo um puritano, nunca cometidos. Igualmente, as páginas que se seguem não revelarão dramas domésticos, nem descreverão viagens a lugares exóticos ou constituirão complicadas árvores genealógicas.

Os apreciadores de autobiografias, porém, encontrarão nas memórias de meu pai, além da meta a que elas se propõem, interesse de acompanhar a evolução das paisagens urbanas, meios de transporte, costumes sociais, modas e hábitos individuais, festas e diversões, não só do Recife, mas também de Olinda, de Caruaru e até mesmo do Rio de Janeiro. Este livro pode ser assim considerado um novo MAXAMBOMBAS E MARACATUS ou um novo ARRUAR, exibindo em narrativa antropocêntrica a figura ostensiva do autor, principal personagem de seu romance, vivido nas últimas décadas do século passado e primeira metade do atual.
Para nós que usufruímos a ventura de conhecê-lo, apreendê-lo e amá-lo, a leitura de o CAMINHOS DE UM CORAÇÃO suscita a impressão de o vermos entrar em casa a dentro, reingressar em nosso convívio, bater um papo em nosso terraço, sentar-se à nossa mesa, partilhar de nosso cotidiano, tal como ele sentia “acontecer” em relação aos seus “mortos”. Tão nítidas as imagens reavivadas por suas evocações que conseguimos reconstituí-lo na variadíssima gama de suas expressões fisionômicas, por exemplo, ao falar, ao rir, ao prestar atenção, ao mostrar-se surpreso, ao mastigar, e até, em gestos menos frequentes, os traços caricaturais do rosto, ao espirrar, ao fazer a barba, ao executar qualquer tarefa manual para que nunca demonstrou habilidade. Um Mário Sette vivo, reencarnado sem efeitos de truques ou de manifestações espíritas. O Mário Sette como era na intimidade; conservador, delicioso contador de histórias, com ditos próprios, não escondendo suas predileções ou antipatias, amável, afetuoso, amigo.
Meu pai, à imitação de seu avô e bisavô, sempre teve o hábito de fazer assentamentos íntimos, quase diários, registrando datas de aniversários, mortes, mudanças de casas, partidas e chegadas de viagens, passeios, publicação de suas obras literárias, ocorrências marcantes ou curiosas etc. Escrevia tudo, com sua letra gorda e legível, em grossos cadernos encartonados. A título de amostragem, transcrevemos um pequeno trecho, copiado ao acaso, de uma dessas preciosas relíquias.

“1934 – Janeiro, 1 – Passamos o primeiro dia do Ano-Novo em paz e felizes. Todos juntos aqui em Maceió. Hilton e Lúcia, casados de pouco, e Hoel regressaram ontem do Recife, pelo ‘Itaquatiá”. Que Deus nos conceda a mesma tranquilidade de espírito, a mesma união pelo resto do ano todo. Janeiro, 2 – Heitorzinho chegou hoje, de avião. Veio passar uns dias aqui, trabalhando nuns projetos de construção. Janeiro, 7 – Fomos hoje, de automóvel, até a cidade do Pilar. Visitei a agência postal-telegráfica de lá. Pilar é uma localidade à margem da lagoa, porém decadente. Janeiro, 8 – Heitorzinho regressou ao Recife, após sete dias de excelente convivência entre nós. Janeiro, 12 – Hoel deve voltar ao Recife, depois de amanhã, pelo “Itapé”. Vai nos deixar, como sempre, muitas saudades.”

E continuando neste mesmo diapasão, essas efemérides, em seu último volume, alcançam os fins de agosto de 1949, até quando lhe foi possível escrever em face dos sintomas de paralisia a tolher os movimentos de sua mão direita. Os derradeiros apontamentos referem-se, no entanto, a uma profunda depressão nervosa de que então se julgava acometido.
O “CAMINHOS DE UM CORAÇÃO”, alicerçado em tão rico manancial de informações, teve a sua elaboração iniciada em 1942. Não é difícil chegar-se a essa conclusão, observando-se que até aquele ano, o autor conta a história de sua vida. Isto é, fatos do passado por ele vividos e reproduzidos, uns por ouvir contar, outros conservados por vagas reminiscências e a maioria, guardados com nitidez, em seus assentamentos íntimos. Daí por diante, as croniquetas que compõem a parte final do livro, focalizam assuntos então da atualidade ou transmitem modos de pensar, estados de espírito, evocações agradáveis, perfis de entes queridos já desaparecidos.
O cronista de ARRUAR sempre gostou de rascunhar seus escritos em cadernos escolares. Desde os tempos de adolescente, ele próprio confessa. Fazia-o de manhã cedo, logo após o café, no seu terraço da frente, sentado numa cadeira cômoda de sua preferência, apoiando o caderno sobre a perna dobrada. Ali ficava entretido, compondo, mas atento à saída dos filhos para o trabalho e dos netos para as aulas, ou reparando nos afazeres domésticos de sua Maria Laura, ora recebendo o embrulho da carne, ora atendendo ao verdureiro, ora pechinchando o preço do peixe e da galinha, nos “bons tempos” em que toda essa freguesia vinha à nossa porta. Depois do banho de chuveiro, tomado impreterivelmente às nove horas, recolhia-se ao seu gabinete e batucava na máquina, com um dedo só, tudo quanto esboçara antes. Em se tratando de matéria a ser enviada à imprensa, esmerava-se na forma, burilava a redação, emendava aqui e ali, quase sempre passava a limpo. As crônicas destinadas ao foro íntimo de suas memórias, sem qualquer beneficiamento e por isso mesmo, espontâneas e autênticas, eram colocadas em folhas em branco de livros mandados confeccionar para esse fim específico.
Toda a obra autobiográfica de Mário Sette ocupa três grossos volumes onde os textos datilografados se misturam a fotografias de várias épocas, recortes de jornais, bilhetes, papéis de folhinha, cartas de fiança, recibos constituindo verdadeiros álbuns de recordações.
Visando uma melhor estrutura expositiva, dividimos o CAMINHOS DE UM CORAÇÃO em quatro partes.
A primeira, sob o título “Do nascimento ao casamento”. Abrange estranhamente o período mais acidentado e sofrido de sua vida. Imprevistos de toda a ordem, desenlaces de afeto e de incompreensões, reencontros, sonhos românticos, saudades marcam os obstáculos, a adversidade, os curtos momentos de bonança, no caminho de um coração afeito a ternuras, a dar e receber amor, a fazer o bem.
A segunda fase, “Família e Literatura”, é a etapa da estabilidade e do labor. O coração aflito encontra no lar, junto à mulher e aos filhos, o refúgio, o abrigo, a redoma de tranqüilidade e ventura que, há tanto tempo buscava, e teve condições de evoluir do poeta lírico de sonetos românticos da juventude ao escritor de consagração nacional através de contos, romances e novelas.
Nas primeiras décadas do século, a família de Mário Sette oferece bem um modelo como vivia a classe média numa sociedade pré-industrial de ainda muito provinciana como era a do nosso Recife. Padrão de vida limitado por uma renda mensal advinda de imutável ordenado de funcionário público federal e da locação de pequenos imóveis, pertencentes à esposa. Residência estabelecida em casas alugadas e frequentemente trocadas em mudanças difíceis entre locais distantes, costume esse comum na época, como acentua Gilberto Freyre, em prefácio ao “Memórias de um Cavalgante”. Uso exclusivo de transportes coletivos, a princípios as maxambombas e os bondes-de-burros e depois os bondes elétricos. Distrações e conforto doméstico que evoluíram lentamente, em face de suas pequenas disponibilidades financeiras, não obstante o rápido progresso técnico-industrial.
Lembro-me que lá em casa, passamos das lâmpadas a álcool à iluminação elétrica. Dos fogões de barros aos fogões de ferro para lenha ou carvão. Dos discos da “Casa Edson, Rio de Janeiro”, ouvidos em gramofones para as etiquetas Odeon, Victor ou Columbia, rodados em vitrolas, ainda de corda. Das garrafas de vinho ou cerveja resfriadas em meias umedecidas e expostas ao vento para aquisição diária de gelo em barra às carrocinhas de distribuição domiciliar. E raros espetáculos de ópera e operetas no Santa Isabel, ou no Parque, para as corriqueiras sessões cinematográficas no Moderno, no Helvética ou nos cinemas de Olinda e dos bairros onde morávamos.
Uma observação digna de nota enfoca o equilíbrio financeiro que meu pai conseguiu manter em seu lar durante a agitada década de 10. Ele próprio, em uma de suas crônicas do último capítulo, comenta a contínua elevação do custo de vida, a partir da inflação motivada pela primeira grande guerra mundial, entre os anos de 1914 a 1918. Não entendemos como pôde ele superar o então aumento “vertiginoso” dos preços se os seus vencimentos nos Correios, de 1909 a 1920, permaneceram os mesmos magros 233$000 e se os aluguéis dos imóveis de minha mãe não gozaram de substanciais acréscimos. O milagre, talvez haja ocorrido com a substituição dos produtos importados pelos de fabricação nacional. Na “belle epóque”, desde os “biscuits” franceses aos palitos de dentes portugueses, incluindo tecidos, louças, enlatados, laticínios, guloseimas, bebidas etc., tudo vinha da Europa. A guerra determinando a mobilização geral, a desorganização industrial e a quase paralisação do comércio exportador dos países conflagrados, provocou a escassez e encarecimento daquelas mercadorias e um consequente desenvolvimento em qualidade e quantidade da produção brasileira. Trocamos a manteiga francesa pela mineira, o vinho português pelo gaúcho, o morim inglês pelo paulista, decerto bem mais baratos.
O capítulo que se segue em CAMINHOS DE UM CORAÇÃO, “Ser avô...um doce envelhecer”, assinala, de muito longe, o começo do fim. São fatos marcantes desse período, o exílio em Maceió, devido as injustiças sofridas em sua terra natal, o casamentos dos filhos, a vinda dos sete netos que teve a ventura de ajudar a criar, a compra da casa própria e o estabelecimento de sua residência numa vivenda construída sob medida para seu conforto e sensibilidade. Em paralelo, a saudade de um Recife distante durante quatro anos, a maturidade, o estado de espírito por ser avô, a convicção de um suave envelhecer nortearam-lhe as atividades para um novo gênero. Em vez da ficção, a evocação. Não mais cria, agora recorda. MAXAMBOMBAS E MARACATUS, ANQUINHAS E BERNARDAS, ONDE OS AVÓS PASSARAM, BARCAS DE VAPOR e ARRUAR reconstituem realmente, dentro de um halo de saudade, a história pitoresca dos ambientes urbanos do Recife e de Olinda.
Em 1943, ganha a aposentadoria dos Correios, a que chama o seu “13 de maio”. As memórias estão sendo escritas e alcançam os dias então vividos. Daí por diante, o CAMINHOS DE UM CORAÇÃO reúne uma série de pequenas crônicas, algumas publicadas, outras inéditas, em que o autor evoca, conceitua, compara, homenageia, desabafa, quase pressentindo o término da jornada. A última delas data de 27 de junho de 1949 quando já se queixava de vagos e imprecisos sintomas da enfermidade que o vitimou.
Ao nosso modo de ver, porém, falta uma página final que não poderia nunca ter sido escrita por meu pai. A derradeira, isto é, aquela que respondesse a pergunta: “Como terá sido o dia em que morri?”, já que as suas memórias começam tentando atender a uma indagação semelhante: “Como teria sido o dia em que nasci?”.
Tomo a liberdade, sanado tal lacuna, de evocar, à moda dele, o dia em que seu coração parou.

Vivia-se, então, um fim de março, em 1950. Mais precisamente, sábado, 25. As folhinhas-calendário mostravam um 25 em algarismos vermelhos, o santificado da Anunciação. Coincidindo com um sábado, o dia da semana consagrado à Virgem do Carmelo.
Manhã de sol, com muita luz a inundar a rua, o jardim na frente, os oitões, as árvores do quintal, entrando pelas janelas abertas.
Lá fora, os ruídos do cotidiano: cacarejos de galinhas, pregões ambulantes, canto das cigarras.
Cá dentro, ele está numa cama de hospital, em seu quarto de dormir, na casa que construíra sob medida para sua sensibilidade. Muito de acordo com seu feitio, em sua Terra – a estremecida Recife – e rodeado por sua “gente”- os seus familiares queridos, os parentes mais chegados, os amigos mais diletos.
A casa está cheia e não se trata de uma festa.
Há muitos meses, desde junho do ano anterior, tonturas e perturbações motoras começaram a inquietá-lo e a todos nós. Na primeira visita, um médico neurologista, o parente e amigo Jarbas Pernambucano de Melo, após rigoroso exame clínico, não encontrou elementos para nenhum diagnóstico definitivo. Semanas depois, ante a evolução rápida dos sintomas e em face de determinados exames de laboratório, o nosso saudoso Jarbas aconselhava-nos levá-lo para o Rio ou para São Paulo em busca de centros neuro-cirúrgicos mais adiantados, uma vez que tudo levava a crer tratar-se de um tumor cerebral e de caráter maligno.
Tivemos que nos dividir. Eu fiquei com a responsabilidade de velar por nossas três residências que, aliás, sempre funcionaram como uma só: a dele, ocupada pelas serviçais; a do mano, onde ficaram os seus seis filhos; e a minha. Enquanto minha mãe, meu irmão e minha cunhada levaram-no e hospedaram-se na Casa de Saúde de Dr. Eiras, em Botafogo, pertencente a um médico pernambucano e amigo, o Leonel Miranda.
Não obstante a discordância de opiniões dos neurologistas cariocas, os exames fisiológicos e radiológicos ali realizados confirmaram o diagnóstico do Jarbas Pernambucano. O Paulo Niemeyer e sua equipe tentaram uma intervenção cirúrgica, mas deparam-se com um tumor profundo, inoperável. Apenas, puderam proporcionar a descompressão com a retirada de um fragmento ósseo de calota craniana.
Houve então, o retorno, alentando-se a esperança de um tratamento radioterápico. Aqui, no Recife, efetivamente, as aplicações de rádio tiveram um êxito relativo. As melhoras se acentuaram na recuperação total da palavra, numa maior lucidez e em pequenos movimentos na perna e no braço direitos. Mas, duraram pouco.
Janeiro, fevereiro... A partir de 10 de março, as pioras em ritmo assustador. Passamos a lhe dar uma assistência integral. Aliás, eu e Hoel sempre nos completamos no modo afetuoso de servi-lo. O mano era o médico, o oráculo, o dono de sua tranquilidade psíquica. Não tomava um remédio, não quebrava a sua dieta, não confiava em diagnóstico que não fosse confirmado pelo “filho médico”, como gostava de dizer. Eu seria o companheiro espiritual dos longos papos, da troca de idéias, da afinidade de sentimentos e sensibilidade, da reciprocidade de afetos, sem qualquer respeito humano.
Agora, naquela manhã luminosa de um sábado, 25 de março de 1950, a casa está cheia, mas já o disse, não se trata de uma festa. Em redor de seu leito, nós, os que estamos ajoelhados, assistimos amargurados o seu lento desenlace. Além de nós dois, os filhos, ali estão uma cunhada, sobrinhos, primos, duas religiosas do Colégio Vera Cruz. De manhã cedo, o padre Bragança trouxera-lhe, pela última vez, a Eucaristia.
Ainda dias antes, na quarta-feira, 22, meu pai falava arrastado e mostrava-se consciente, estávamos minha mãe, Hoel e eu, sós com ele. Em dado momento, o mano fora atender a uma ligação telefônica. Minha mãe precisara ir à cozinha. De repente, ele começou a rir. Um riso esquisito, em seu rosto semi-imobilizado, sem motivo.
“Tive agora uma notícia tão boa... Tão boa mesmo...”
Articulava, com dificuldade, as palavras. Acreditei numa confusão mental. Um “delírio”.
“Quem lhe deu a notícia papai?”
E ele, de imediato, continuando a rir, como querendo transmitir alegria, felicidade:
“Foi Nossa Senhora, meu filho...”
No dia seguinte, junto à sua cabeceira, tenho no meu lado uma prima, comadre e muito amiga. Meu pai me olha demoradamente, segura-me com sua mão esquerda, puxa-me para junto de si, beija-me e faz um esforço enorme para se fazer entender.
“Até no céu...”
Não mais voltou a falar. Logo depois, o coma profundo. Quinta-feira... Sexta-feira... Aquela manhã de sábado...
Minha mãe viu-se dispensada de lhe oferecer a sua presença e entregar-se a sua imensa dor. E Hoel, entre os que o rodeiam, é o único que não está de joelhos. Debruça-se sobre o corpo moribundo, de estetoscópio em punho, auscultando os seus últimos alentos de vida. Impassível ante o irremediável, o mano consegue o autodomínio sobre o desespero, disfarça o sofrimento que o aniquila e faz questão de se dar, como médico, até o fim, àquele que foi tudo para nós. E, de olhos enxutos, fisionomia aparentemente normal, tem perfeita consciência do que está, concreta e simbolicamente, querendo ouvir.
Alguém sussurra:
“Não respira mais...”
“O coração ainda bate...”
Mais alguns segundos.
E, pelos olhos de meu saudoso irmão, tenho a certeza de que acabara de escutar o derradeiro pulsar de um coração tão grande e tão bom que jamais morrerá em nossa saudade, em nossa admiração e em nosso querer bem.

Fonte: Prefácio de Hilton Sette da edição post-mortem SETTE, Mário. Memórias Íntimas: Caminhos de um coração. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980.